Que vantagens tem a esclerectomia profunda em relação à trabeculectomia ab externo no glaucoma de ângulo aberto?

Maria da Luz Freitas, MD, FEBOS Glaucoma

Grau de Consultor da Carreira Médica Hospitalar de Oftalmologia. Hospital da Arrábida, Porto.

1.Segurança

A esclerectomia profunda é uma cirurgia filtrante, cuja vantagem sobre a trabeculectomia é baixar a pressão intra-ocular no período intra-operatório de forma gradual e progressiva, através da passagem controlada do humor aquoso entre a câmara anterior e o espaço subconjuntival. Com esta técnica cirúrgica não há abertura da câmara anterior, nem saída abrupta de humor aquoso ou perda de profundidade daquela. Este facto reduz para quase zero as atalamias e os descolamentos coroideus e, a inflamação intra- e pós-operatória é bastante menor. Esta realidade associada à não aplicação de atropina no pós-operatório faz com que o olho no dia seguinte à cirurgia esteja calmo, com recuperação visual e restituição da vida activa bastante rápida. O aumento de segurança faz com que este procedimento seja feito em regime de ambulatório. A passagem controlada e progressiva do humor aquoso é conseguida com a abertura do canal de Schlemm, a criação de uma janela trabeculo-descemética e o “peeling” da face interna do canal de Schlemm que muitas vezes se associa a microperfurações da malha justacanalicular. J. Vaudaux e A. Rossier1,2, após terem realizado estudos em olhos enucleados chegaram à conclusão de que a velocidade de saída humor aquoso e descompressão da câmara anterior é 5,5 vezes menor na esclerectomia profunda, havendo também um aumento da área de drenagem nesta técnica cirúrgica, permitindo uma saída sustentada ao longo do tempo.

Assim sem prejuízo do prepósito inicial (facilitação da drenagem do humor aquoso) a esclerectomia profunda:

  • não entra na câmara anterior
  • permite uma saída controlada do humor aquoso
  • não provoca atalamias nem hipotonias graves no intra-operatório (evitando descolamentos coroideus, alterações maculares ou papilares)
  • não há realização de iridectomia (diminui a inflamação e não altera a dinâmica de fluxos)
  • diminui o desencadeamento de factores inflamatórios
  • não há afloramento de botão vítreo (raro mas pode acontecer na trabeculectomia)
  • dispensa o uso de atropina no pós-operatório

Consequentemente há um menor número de complicações no peri-operatório, menor número de complicações no pós-operatório imediato e uma recuperação mais rápida. É um procedimento cirúrgico que pode ser realizado em regime ambulatório e permitiu o alargamento de indicações cirúrgicas

No pós-operatório imediato ou tardio, por vezes é necessário fazer goniopunção. A goniopunção é um procedimento coadjuvante da esclerectomia profunda, assim como a capsulotomia YAG na cirurgia de catarata ou o “needling” na trabeculectomia. É um procedimento eficaz e seguro, não aumenta o risco de infecção ou a ida ao bloco operatório como acontece com o “needling” da trabeculectomia.

Por outro lado e não menos importante, com esta técnica o efeito cataratogénico é menor do que na trabeculectomia. Para isso contribuem vários factores: descompressão lenta, ausência de atalamias, menor inflamação, ausência de iridectomia. O Advanced Glaucoma InterventionTrial3 refere que ao fim de 5 anos, 78% de olhos submetidos a trabeculectomias primárias desenvolveram cataratas e, que o risco de desenvolver catarata duplica se houve câmaras anteriores baixas e inflamação importante no pós-operatório. Shaarawy et al4 refere que ao fim de 64 meses a catarata senil progrediu em 25% dos doentes submetidos a esclerectomia profunda.

2.Eficácia

Há uma ideia generalizada de que a esclerectomia profunda é menos eficaz do que a trabeculectomia. Vários factores contribuíram para isso. Entre os mais importantes considero o facto de esta técnica cirúrgica ter uma curva de aprendizagem mais longa do que a trabeculectomia, é necessário uma abertura efectiva do canal de Schlemm e realização do “peeling” completo e esta percepção requer treino. Eu própria verifiquei este facto quando comparei dois grupos idênticos operados por mim, um na fase de aprendizagem e outro ao fim de 10 anos: não só observei maior descida percentual tensional (36,7% vs 40,4%) como uma PIO média mais baixa ao fim de 12 meses (18,6mmHg vs 15,7mmHg)5.

Outro factor é a selecção de doentes, o ângulo camarular tem de estar aberto e ser pelo menos grau 3 de Shaffer. Em ângulos mais estreitos e sem sinequias anteriores periféricas, a técnica pode ser usada em cirurgia combinada (esclerectomia profunda e facoemulsificação de catarata).

Muitos dos estudos englobam a curva de aprendizagem, mas o mais importante é que na realidade não há nenhum estudo randomizado entre as duas técnicas, com grupos populacionais idênticos e realizadas pelos mesmos cirurgiões.

Contudo, não queria deixar de referir um trabalho publicado por Bessing et al6 que faz a avaliação ao fim de 10 anos dos primeiros 105 olhos submetidos a esclerectomia profunda com implante de colagénio realizadas por André Mermoud. Verificou que o sucesso qualificado aos 10 anos foi de 89%, com uma descida do valor médio da PIO pré-operatória de 26,8±7,7mmHg para valor médio de PIO pós-operatório de 12,2±4,7mmHg. A acuidade visual corrigida desceu de 0,71±0,33 para 0,53±0,25 no primeiro dia de pós-operatório, tendo recuperado ao fim de um mês e mantendo-se ao longo dos 10 anos (taxa de cirurgia de catarata de 40% ao fim dos 10 anos). Ao longo deste tempo (desde o 1º mês até 119º mês) foi realizada goniopunção em 61 olhos, sendo a média de 29 meses entre a esclerectomia e a goniopunção. Não foi descrita nenhuma complicação grave.

Como com esta técnica cirúrgica os fenómenos inflamatórios são menores, também diminuem os mecanismos de fibrose e nos casos dos glaucomas secundários a uveítes aumenta substancialmente a eficácia cirúrgica.

A abertura do canal de Schlemm, a criação de uma janela trabeculo-descemética e o “peeling” da face interna do canal de Schlemm que muitas vezes se associa a microperfurações da malha justacanalicular, permite uma saída lenta da saída do humor aquoso. Para além disso a criação deste espaço associado à criação do espaço intraescleral aumenta a área de filtração quer na altura da cirurgia quer de forma permanente ao longo do tempo, assim como permite vias complementares de drenagem (canal de Schlemm, corpo ciliar). Isto vem não só permitir melhorar os resultados com a realização de goniopunções assim como obter ampolas de filtração mais planas, que interferem menos na dinâmica do filme lacrimal e consequentemente no conforto do doente.

3.Alargamento de indicações

As indicações genéricas de cirurgia de glaucoma são: glaucomas não controlados medicamente, glaucoma ou hipertensão ocular intolerantes à terapêutica médica e incumprimento da terapêutica. Glaucomas não controlados medicamente são aqueles em que há sinais de progressão de doença, comprovados por perimetria ou aumento focal ou geral da relação escavação/disco.  

Esta técnica cirúrgica pode ser realizada, isoladamente ou associada a facoemulsificação, em todas as situações em que o ângulo camerular esteja integro e seja pelo menos grau 3 no sistema de Shaffer.

Está assim indicada em: glaucoma primário de ângulo aberto; glaucoma pseudoesfoliativo; glaucoma pigmentar; glaucoma cortisónico; glaucoma em olhos pseudofáquicos ou fáquicos; outros glaucomas secundários de ângulo aberto.

Como esta técnica é muito menos pró-inflamatória e não há descompressões rápidas tem indicação preferencial no glaucoma secundário a uveites, glaucoma em alta miopia e glaucoma associado a síndrome Sturge-Weber ou nanoftalmia.

Um outro grupo em que a trabeculectomia tem risco cirúrgico acrescido é o grupo de glaucomas terminais de ângulo aberto. Devido à segurança e eficácia da esclerectomia profunda, esta deve ser a técnica de eleição neste grupo de doentes7.

As vantagens da esclerectomia profunda em relação à trabeculectomia no glaucoma de ângulo aberto são: segurança, sem perda de eficácia. Isto permite ser um procedimento cirúrgico realizável em ambulatório, com menor número de complicações, de rápida recuperação e regresso à vida activa. Permite também a indicação cirúrgica em situações que anteriormente eram de muito alto risco.

4.    Possibilidade de uso de lentes premium

Os doentes com glaucoma são factor de exclusão em todos os trabalhos que servem de lançamento ou de estudo de lentes premium. As razões que levam a esta exclusão são distintas quando são consideradas as lentes premium multifocais e lentes premium monofocais tóricas. Em relação às lentes multifocais estas por si só podem provocar alterações de sensibilidade ao contraste escotópico e mesópico, para além de fenómenos fotópicos e de glare8,9,10,11. Apesar de nas lentes multifocais asféricas difractivas de última geração as alterações serem menores12,13, é consensual a sua não utilização, mesmo nos glaucomas iniciais. A utilização deste tipo de lentes nestes doentes pode resolver o problema de uso de óculos, mas altera ainda mais a qualidade de visão já fragilizada nos doentes com glaucoma. Tal como escreveu Korth14 na sinopse de vários testes electrofisiológicos, estudo de sensibilidade ao contraste temporal, espacial e cromática: nos glaucomas iniciais há redução da sensibilidade ao contraste, especialmente em condições mesópicas, correlacionáveis com as alterações perimétricas e que interferem com as actividades do quotidiano.

Em relação às lentes premium monofocais tóricas levantam-se outras questões: se um doente implantado com uma lente monofocal tórica necessitar de uma cirurgia de glaucoma qual é o astigmatismo ou erro esférico induzido? ou na realização de uma cirurgia combinada o astigmatismo induzido pela combinação das duas cirurgias é distinto da induzida pela cirurgia de catarata isolada? Mais uma vez há um número escasso de publicações que nos ajudem a avaliar as alterações refractivas provocadas pelas variadas cirurgias de glaucoma. Por outro lado, nas publicações existentes o número de olhos analisados é muito reduzido. Egrilmez15 publicou em 2004 um estudo comparativo das alterações queratométricas induzidas pela trabeculectomia, esclerectomia profunda com T-flux e viscocanalostomia. Concluiu que a trabeculectomia induzia maior astigmatismo: 1,24 ± 0,96Dp versus 0,88 ± 0,47DP da esclerectomia profunda versus 0,42 ± 0,22Dp da viscocanalostomia. Um outro estudo16 mostrou que 47,4% das esclerectomias profundas induziam um astigmatismo a favor da regra (0,03 a 1,67Dp). Iniciei o ano passado um estudo prospectivo das alterações por mim induzidas aquando da realização de esclerectomia profunda com implante Aquaflow como procedimento isolado ou combinado. Apesar de a amostra ser de 50 olhos, as alterações astigmatas induzidas em 90% dos casos na esclerectomia profunda isolada foram <0,5Dp e variação do eixo em média de 1,6º ± 6,1º; no procedimento combinado o astigmatismo induzido foi do mesmo grau de grandeza, mas as alterações de eixo variaram entre 20 e 25º.

Apesar de as amostras em todos os trabalhos serem pequenas e da necessidade de aumentar o número de olhos estudados parece que as alterações astigmatas induzidas nos procedimentos não penetrantes (esclerectomia profunda e viscocanalostomia) são reduzidas, sendo compatíveis com o uso de lentes premium tóricas monofocais. Contudo não podemos esquecer que como na facoemulsificação, as alterações induzidas são específicas de cada cirurgião, pelo que cada um deve fazer o seu próprio estudo de indução de astigmatismo e as tabelas de cálculo das lentes devem introduzir este factor quando se trata de cirurgias combinadas.

As vantagens da esclerectomia profunda em relação à trabeculectomia no glaucoma de ângulo aberto são: segurança, sem perda de eficácia. Isto permite ser um procedimento cirúrgico realizável em ambulatório, com menor número de complicações, de rápida recuperação e regresso à vida activa. Permite também a indicação cirúrgica em situações que anteriormente eram de muito alto risco.

 

 

4ª Edição - Maio 2017