Qual o papel dos anti-metabolitos como adjuvantes intra e pós-operatórios?

Fernando Trancoso Vaz, MD

Assistente Hospitalar Graduado de Oftalmologia, Coordenador da Consulta de Glaucoma do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, E.P.E.
Co-Autores: 
Susana Henriques, Ana Sofia Lopes, Diana Silva, Mafalda Mota, Maria Lisboa
Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, E.P.E.

Na trabeculectomia cria-se uma comunicação – esclerectomia protegida – que permite drenar o humor aquoso para o espaço subconjuntival, criando uma bolha de filtração. No pós-operatório ocorre um processo normal de cicatrização, sendo a fibrose ao nível da interface episclera-conjuntiva uma das principais causas de falência da cirurgia. De forma a modular este processo, podem ser utilizados como coadjuvantes intra e pós-operatórios vários agentes farmacológicos. Apesar do interesse recente por novas moléculas, o 5-fluouracilo (5-FU) e a mitomicina C (MMC) continuam a ser os fármacos mais utilizados para este fim1.

O 5-FU atua antagonizando o metabolismo das pirimidinas, inibindo a replicação de DNA e suprimindo a atividade fibroblástica. A MMC é um agente alquilante não específico, cujo metabolito ativo vai estabelecer “crosslinks” com moléculas de DNA e desta forma inibir a síntese de DNA. A MMC atua não só nos fibroblastos (como o 5-FU) mas também nas células endoteliais, sendo 100 vezes mais potente do que o 5-FU, inibindo os fibroblastos por 30 dias (vs. 1 semana com o 5-FU).

A dose, o tempo de exposição e a área de aplicação influenciam os resultados obtidos em termos de efeito anti fibrótico2. Existe alguma variabilidade quanto à dose, duração e área de exposição aos antimetabolitos utilizados3 4. A Sociedade Europeia de Glaucoma5 (SEG) recomenda para uso intraoperatório 5-FU (embora ainda referido nos ‘Guidelines’ da SEG é cada vez menos usado intraoperatoriamente, mas  é sobretudo usado no posop associado ou não a ‘needling’) em concentrações de 25-50 mg/mL durante 5 minutos ou MMC 0.1-0.5 mg/mL durante 1-5 minutos, administrado em esponja. No pós-operatório recomenda injeções de 0.1 mL de 5-FU 50 mg/mL ou de MMC 0.02 mg/mL. Estudos in vitro6 7 (1990 e 1993), sugerem que a inibição dos fibroblastos por MMC está somente dependente da concentração e não do tempo, referindo que a aplicação de esponja de MMC durante 1’ ou 5’ teria a mesma eficácia. Um estudo clínico de Zacharia PT e col (1993)8 revela que os tecidos ficariam saturados com MMC após uma aplicação de 1 minuto. Segundo estudos de Manners T e col (2001) 9 o controlo da PIO era o mesmo quando se usava MMC 2 ou 5 minutos.

Estudos farmacocinéticos in vitro com MMC (1993 e 2004) mostraram que após os 3 minutos de exposição há um uma inibição de todos os fibroblastos in vitro, atingindo-se posteriormente um plateau de inibição, sendo pouco o efeito observado para além deste período, e que entre os 1-3 minutos há uma variação considerável na dose de fármaco que é captado e logo no grau de inibição fibroblástica10 11 12 pelo que preconizam a duração de 3 minutos fazendo variar o efeito antifibrótico com a dose de MMC que é aplicada e fazendo-o de uma forma difusa numa grande área de forma a obter uma bolha difusa. Postura que assumimos no nosso serviço.

Peng T. Khaw e col.13  sugerem que a escolha do agente e duração de exposição deve ser estratificada de acordo com os fatores de risco para fibrose e complicações. Classificam-se assim os doentes como tendo baixo, intermédio ou elevado risco de falência de cirurgia de glaucoma – Classificação Risco Moorfields Eye Hospital/University of Florida (Tab.1). Se baixo risco optam ou por não usar nada ou por utilizar 5-FU 50mg/mL durante 5 minutos; se risco moderado fazem 5-FU 50 mg/mL 5 minutos ou MMC 0.2 mg/mL 3 minutos; se risco elevado utilizam MMC 0.5 mg/mL durante 3 minutos.

A utilização de antimetabolitos no pós-operatório deve ser feita em redor da bolha de filtração, com ou sem needling associado (Fig.1), em doentes que evidenciem sinais de cicatrização e risco iminente de falência de bolha (aumento da vascularização, conjuntivas espessas e menos móveis, redução do tamanho e altura da bolha, vasos “corkscrew”), mesmo se PIO normais. Por norma, deve-se sempre tentar restaurar a funcionalidade da bolha em risco de falência (recorrendo a corticoides, 5-FU, etc) antes de se avançar para novo procedimento cirúrgico. 

Fig.1 Needling com 5-FU – Aspeto antes (A) e depois (B) do needling (bolha difusa e menos vascularizada).

Fig.1 Needling com 5-FU – Aspeto antes (A) e depois (B) do needling (bolha difusa e menos vascularizada).

Apesar das vantagens relativas à diminuição da taxa de falência cirúrgica, o uso de antimetabolitos pode gerar também um aumento de complicações pós-operatórias (leakage, hipotonia, descolamentos da coroideia e infeções – blebite ou endoftalmites). A trabeculectomia modificada Moorfields Safer Surgery (MSS) visa diminuir algumas destas complicações relacionadas com a bolha de filtração ao fazer uma incisão conjuntival de base fórnix, com aplicação de antimetabolitos numa área mais extensa, evitando assim bolhas quísticas e localizadas (Fig.2).

Fig.2 Trabeculectomia modificada Moorfields Safer Surgery (MSS) – Aplicação difusa de MMC – Aspeto da bolha 1 dia (A) e 1 ano após cirurgia (B).

 

Fig.2 Trabeculectomia modificada Moorfields Safer Surgery (MSS) –Aplicação difusa de MMC – Aspeto da bolha 1 dia (A) e 1 ano após cirurgia (B).

 

De entre outros agentes mais recentemente estudados na modulação da cicatrização pós-operatória destacam-se os fatores antiangiogénicos (anti-VEGFs)14, como o bevacizumab (Avastin®) e as barreiras físicas, como o OloGen®, não obstante ainda não existirem evidências suficientes de que possam substituir a MMC. O bevacizumab demonstrou ter propriedades anti-inflamatórias e anti-fibróticas15,16, para além das antiangiogénicas, com diminuição da migração de células polimorfonucleadas e da proliferação de fibroblastos e consequente inibição da deposição de colagénio17. Persiste mais tempo nos tecidos ao se fixar na esclera18. O OloGen® consiste numa matriz porosa de colagénio-glicosaminoglicanos, que reorienta a depositação das fibras de colagénio ao longo dos seus feixes, impedindo a compactação da cicatrização, pretendendo diminuir assim a necessidade do uso de antimetabolitos5. É degradado ao fim de 90-180 dias.

Conclui-se assim que os adjuvantes, sejam intra e/ou pós-operatório, minimizam o risco de falência da drenagem induzida cirurgicamente, não sendo contudo consensual qual a dose e/ou tempo de exposição a ser utilizado. Continua a procura de fármacos mais seguros, e com igual ou superior, potência da MMC19, ou novas formas de disponibilizar os fármacos que usamos classicamente e de serem libertados lentamente20 (ex. discos de hidrogel com MMC, nano partículas com MMC que se fixam a receptores LDL existentes nos fibroblastos da Tenon, etc.) 

 

4ª Edição - Junho 2017