Qual é o interesse do implante de matrix de colagénio biodegradável (Ologen) na trabeculectomia?

Maria da Luz Freitas, MD, FEBOS Glaucoma

Grau de Consultor da Carreira Médica Hospitalar de Oftalmologia. Hospital da Arrábida, Porto.

Introdução

A trabeculectomia ab externo é uma cirurgia filtrante ampolo-dependente, cuja modulação do processo cicatricial é fundamental para o sucesso cirúrgico1.

A falência ligada ao processo cicatricial está associada ao processo inflamatório, proliferação de fibroblastos e síntese de matrix extracelular2.

Os diferentes componentes deste processo são desencadeados pela própria cirurgia, mas muitas vezes já estão presentes antes do acto cirúrgico. São causados ou potenciados por factores iatrogénicos como o uso crónico de terapêutica tópica, com ou sem componente alérgico associado; presença de cirurgias prévias; glaucoma secundários uveíticos ou neovasculares ou ainda associados a factores constitucionais como seja a raça ou idade jovem.

Não há protocolos bem estabelecidos orientadores da melhor estratégia para diminuir a possibilidade de falência cirúrgica por processos cicatriciais e consequentemente aumentar a taxa e a sobrevida da filtração. A existência de meta-análises neste campo cirúrgico é de difícil concretização desde logo pela falta de estudos randomizados com populações similares, mesma execução das técnicas cirúrgicas, mesmos cirurgiões, mesmos tempos de follow-up e mesmos critérios e métodos de avaliação. Contudo há um conjunto de recomendações em que o seu uso é deixado ao critério dos cirurgiões face ao doente em concreto. São exemplos a substituição da terapêutica tópica (essencialmente análogos de prostaglandinas, prostaminas e brimonidina) por terapêutica sistémica um mês antes da cirurgia; uso de fluorometolona ou anti-inflamatórios não esteroides tópicos 15 dias a 30 dias antes da cirurgia3,4.

Como estratégias intraoperatórias há um conjunto de possibilidades, que muitas vezes resulta de experiência ou convicção pessoais e outras estão bem estudadas em termos de benefício e riscos cirúrgicos: a baixa cauterização, a tenectomia, o uso de anti- metabolitos (5- Fluorouracilo e Mitomicina C), os conformadores ou também chamados criadores de espaço (matrix de colagénio biodegradável-Ologen®), o uso de anti-VEGFs, injecção de corticoides subconjuntivais no fim da cirurgia. Como estratégia do pós-operatório há uma variabilidade de tempo de utilização e tipo anti-inflamatórios esteroides e não esteroides tópicos a usar1. Há também a possibilidade de uso de anti-metabolitos e needling associados a diferentes fármacos (por exemplo: anti-metabolitos, anti-VEGFs).

Apesar de ser usado em “off-label”, é incontornável o avanço que os anti-metabolitos na década de 80 do passado século vieram trazer no controlo do processo cicatricial da ampola de filtração de muitas situações clínicas. Como todos nós sabemos, o 5- Fluorouracilo (5-FU) actua de forma selectiva na fase S do ciclo celular, inibe o crescimento dos fibroblastos, reduz colagénio tipo I, fibronectina e migração celular durante uma semana após a sua utilização. Inicialmente era usado no pós-operatório de forma injectável, adjacente à ampola, 0,1 ml de 50 mg/ml e, por vezes mais de que uma vez, causando aumento do número de consultas de controlo e desconforto para os doentes. Nos últimos anos passou também a ser usado durante a cirurgia embebido em esponja ou algodão prensado, na concentração de 25 ou 50 mg/ml até 5 minutos. A Mitomicina C (MMC), mais potente cerca de 100 vezes em relação ao 5-FU, tem um efeito mais prolongado (cerca de 1 mês). Inibe a replicação do DNA, mitose, síntese do RNA e proteica e assim inibe o crescimento e proliferação dos fibroblastos e células endoteliais presentes no processo cicatricial. Inicialmente era usado exclusivamente no intraoperatório. As concentrações e tempos de exposição nunca foram bem estabelecidos, a concentração utilizada pode variar 0,1 a 0,5 mg/ml e o tempo de exposição pode ser de 1 até 5 minuto. Mais recentemente passou a ser também usada no pós-operatório, adjacente à ampola de filtração, injecção de 0,1 ml na concentração de 0,02 mg/ml. Como todas as substâncias activas tem efeitos considerados secundários ao efeito primário pretendido. Alguns dos efeitos secundários são específicos de cada princípio activo, mas outros são comuns aos dois produtos como o aumento de risco de hipotonias graves, drenagem para o exterior da ampola (“bleb leak”) persistentes e aumento de infecções localizadas à ampola (blebite) ou mesmo endoftalmites. Stamper et al5 descreve que a maculopatia hipotónica com a utilização de 5-FU é mais frequente e acentuada em idade jovem e miopia moderada, sendo quantificada por Whiteside-Michel J et al6 de 5% dos casos quando utilizada em idade jovem. Segundo Smith MF et al7 “bleb leak” com uso de 5-FU intra-operatório (50mg/ml) ao fim de 1 ano follow-up surgem em 8% dos casos. A incidência de infecções da ampola de filtração varia entre 1,9 a 13%, versus o risco de 0,2 a 4,8% nas trabeculectomias simples, no mesmo intervalo de follow-up 8. O 5-FU tem outro tipo de particularidades próprias como potenciar defeitos de superfície ocular como queratites punctata e defeitos epiteliais por vezes de difícil resolução. O uso de MMC pode provocar maculopatia hipotónica em cerca de 8.9% dos casos9. Segundo  WunDunn et al.  “bleb leak” com utilização intra-operatória de 0.2mg/ml durante 2 minutos ao fim de 1 ano de follow-up é de 6.8%10. A incidência de infecções da ampola de filtração com MMC com tempos de follow-up entre 16 meses e 8 anos, varia entre 1,5% a 13,8%8. Greenfield et al11 verificou que a incidência de blebite ao fim de 16 meses de follow-up era de 2,1% com o uso de MMC versus 0,2 a 1,5% quando não era usado nenhum tipo de anti-metabolitos. Outros efeitos secundários importantes relacionados com a MMC dizem respeito à lesão irreversível do entotélio corneano aquando da entrada acidental de MMC na câmara anterior e toxicidade sobre o corpo ciliar se houver contacto directo. Mas a maior crítica à MMC é a possibilidade de criar ampolas de filtração finas e avasculares e muitas vezes de tamanho considerável que aumento o risco ao longo dos anos de ruptura, infecção e desconforto permanente com alterações da superfície ocular(Fig.1). 

Fig. 1 – Ampola de filtração mitomicínica

Um estudo comparativo de tipo “case-control” protagonizado por Jampel, cujo objectivo era determinar factores de risco para infecção tardia das ampolas de filtração, verificou que o uso de MMC isolado conferia um risco relativo de 2,4512. Numa revisão retrospectiva de endoftalmites relacionadas com ampolas de filtração, Song e al13 verificaram que 82% dos olhos infectados (40 de 49 olhos) na mesma instituição e ao longo de 15 anos havia o envolvimento de anti-metabolitos (33 olhos operados com MMC e 7 olhos operados com 5-FU).

O que é o implante de matrix de colagénio biodegradável?

No inicio deste século surgiu um novo implante de colagénio biodegradável - o Ologen®. O Ologen® é matrix de colagénio biodegradável, de origem animal, flexível, cuja estrutura matricial porosa (0 – 300 μm) é obtida por cross-linked liofilizado de atelocolagénio tipo I (>90%) e glicosaminoglicanos (<10%). Devido à sua boa tolerância imunológica começou a ser utilizada como um conformador ou criador de espaço na cirurgia filtrante em substituição ou em conjugação com anti-metabolitos em baixas doses. É um implante absorvente, que não provoca aumento de volume ou pressão sobre as estruturas envolventes mas optimiza e estabiliza a área lesada de forma a modelar os processos cicatriciais conectivos e epiteliais. Estão descritos como mecanismos de acção a capacidade de manter uma barreira entre a ampola de filtração e tecido subconjuntival, evitando a migração celular e formação de fibroblastos através da sua formação porosa; a capacidade de absorver o humor aquoso e evitar a contração de tecidos. Tem como contra-indicação história de hipersensibilidade ao colagénio porcino e, à semelhança dos anti-metabolitos, não há estudos de segurança realizados em crianças ou grávidas. São possíveis vantagens em relação ao uso de anti-metabolitos a obtenção de ampolas de filtração planas, sem risco acrescido de hipotonia, infecção ou “bleb leak”. Se houver sinal de alergia ou a existência de maculopatia hipotónica pode ser retirado.  Parece também reduzir a necessidade de realização de “needling” ou injecções de anti-metabolitos no pós-operatório.

Existem vários modelos, mas os mais utilizados na trabeculectomia ab externo são os 6 mm de diâmetro por 2 mm de espessura e os de 12 mm de diâmetro por 1 mm de espessura. Podem ser utilizados na totalidade ou de forma seccionadas (Fig. 2) conforme as situações clínicas.

Fig. 2- a. implante 6mmx2mm; b. implante 12mmx1mm; c. sector de implante

Indicações do implante matrix de colagénio biodegradável

As indicações de utilização do implante Ologen®  de forma isolada ou em conjugação com MMC em baixas doses na trabeculectomia ab externo são as mesmas indicações para o uso de anti-metabolitos: falência de cirurgias filtrantes prévias, glaucomas congénitos ou juvenis, glaucomas primários em adultos jovens, raça negra, glaucomas secundários (uveíticos, neovasculares), conjuntivas fibrosadas por uso crónico de colírios, cirurgia oculares prévias.

A técnica cirúrgica, remoção do implante e diferentes casos clínicos são apresentados num texto separado: Uso do implante de matrix de colagénio biodegradável na trabeculectomia – técnica cirúrgica e casos clínicos.

Publicações

Devido à falta de estudos randomizados ou não randomizados ou “case – control study” com populações similares em termos de idade, tipo de glaucoma, gravidade, tipo e tempo de utilização de colírios; mesma execução das técnicas cirúrgicas; mesmos cirurgiões; mesmos tempos de follow-up e mesmos critérios e métodos de avaliação leva à dificuldade de realização de meta-análises consistentes e avaliações comparativas neste campo cirúrgico. À semelhança do que já foi descrito nos efeitos laterais do uso de anti-metabolitos, encontramos discrepância de resultados nos estudos e análises comparativas dos doentes operados com Ologen® versus anti-metabolitos ou trabeculectomia simples em relação à eficácia e segurança.

Apesar desta realidade não posso deixar de referir e comentar algumas publicações.

Cilino et al14 publicaram em 2016 um estudo comparativo, randomizado, com follow-up de 5 anos de 40 olhos submetidos a trabeculectomia com Ologen® ou MMC. Ao fim dos 5 anos o grupo de Ologen mostrou igual eficácia e com segurança não inferior ou até mesmo superior.  A concentração de MMC utilizada foi de 0,2mg/ml durante 2 minutos e implante de colagénio 6x2mm. No pós-operatório foi utilizado dexametasona 0,1% durante dois meses. Foram incluídos no estudo glaucomas primários de ângulo aberto e pseudoesfoliativos, tendo sido excluídos olhos com cirurgias prévias ou história de traumatismos.

Num outro estudo15, prospectivo e randomizado, com follow-up também de 5 anos, foi colocado implante Ologen® (7mmx4mm) em 31 olhos e utilizada a MMC (0,2mg/ml durante 2 minutos) em 32 olhos. No pós-operatório foi utilizado dexametasona 0,1% durante 6 semanas. Neste estudo o Ologen® mostrou uma taxa de sucesso completo e qualificado superior ao da MMC, assim como extensão e vascularização das ampolas diferentes nos dois grupos. As complicações pós-operatórias nos dois grupos de estudos não diferiram.

O estudo realizado no Centro Oftalmológico de Zhongshan16, concluíram que o implante Ologen® e MMC na trabeculectomia têm a mesma eficácia quanto à redução da pressão intraocular, redução de número de fármacos, taxas de sucesso e tolerância. Contudo aconselham precaução na interpretação dos resultados devido à relevância clínica ser ainda limitada.

Em 2015 Q Ji e colaboradores compararam a eficácia e segurança do implante Ologen® com o uso de MMC. Refere igual taxa de sucesso a longo prazo com o implante, mas não parece haver vantagem em evitar as complicações relacionadas com a MMC17.

Qual é então o interesse do implante de matrix de colagénio biodegradável na trabeculectomia?

O implante parece ser uma alternativa segura e eficaz à utilização de anti-metabolitos na trabeculectomia ab externo. A eficácia parece ser no mínimo sobreponível ao uso de MMC, com vantagem de ser removido em caso de hipotonia. As ampolas de filtração são planas, vascularizadas sem risco acrescido de hipotonia, infecção ou “bleb leak”.

 

 

4ª Edição - Janeiro 2018