Teremos outras armas terapêuticas para além da redução da pressão intra-ocular?
Nuno Lopes, MD, FEBO
Acredito que sim.
O Glaucoma é uma patologia neurodegenerativa crónica multifactorial das células ganglionares da retina (CGR) e seus axónios, cujo tratamento clássico se baseia na redução da pressão intra-ocular (PIO).
Porém, sabemos que a neuropatia glaucomatosa pode progredir apesar de valores baixos e optimizados da PIO1.
Tratando-se da principal causa de cegueira irreversível no mundo2, não têm sido poupados esforços no sentido de descobrir terapias adjuvantes à redução da PIO apesar das dificuldades inerentes à demonstração de resultados nesse campo. A crescente evolução na compreensão da doença e sua etiopatogenia, tem tornado possível o estudo de novos alvos terapêuticos implicados na progressão da doença.
As principais temáticas avaliadas têm sido a pressão de perfusão ocular, a pressão translaminar e a tríade de neuroprotecção, neurorrecuperação e neurorregeneração3.
1. Perfusão Ocular
São inúmeros os estudos que associam a hipoperfusão ao dano glaucomatoso4. Sabe-se no entanto que nas doenças oculares em que primariamente estão envolvidos mecanismos vasculares, como a retinopatia diabética e oclusões vasculares, não se observa a escavação típica da lesão glaucomatosa5,6. A hipoperfusão não pode portanto ser considerada por si só como um factor de risco. O processo desencadeador da lesão glaucomatosa parece estar dependente de uma disfunção nos mecanismos locais de auto-regulação, que se mostram incapazes de compensar as instabilidades de perfusão transitórias, e perpetuam um mecanismo de isquemia-reperfusão gerador de radicais livres de O2 e indutor da cascata de apoptose das CGR7.
Atribui-se assim um valor terapêutico significativo à melhoria da pressão de perfusão e dos mecanismos locais de auto-regulação8.
2. Pressão Translaminar
Entende-se por pressão translaminar (PT) o gradiente entre a PIO e a pressão do liquido cefalo-raquidiano (LCR) e do tecido retrobulbar9,10.
Reconhece-se hoje que alterações nesse gradiente influenciam a patofisiologia do nervo ótico, por11,12,13,14,15:
efeito mecânico do abaulamento da lâmina cribosa com compromisso dos axónios, células de suporte e suprimento vascular
redução do transporte axonal retrógrado
Estudos demonstraram a existência de pressões do LCR significativamente mais baixas em sujeitos com glaucoma normotensional (GNT) e primário de ângulo aberto (GPAA), relativamente a controlos. Foram também encontrados gradientes de PT mais elevados em pacientes com GNT comparativamente a pacientes com GPAA. Estudos paralelos revelaram ainda pressão do LCR significativamente mais elevada em pacientes com hipertensão ocular sem evidência de glaucoma, comparativamente com o grupo controlo16,17,18.
Estes resultados evidenciam a existência de barotrauma em casos de GNT e sugerem valor terapêutico no aumento da pressão do LCR dentro dos limites constitutivos.
3. Neuroprotecção, Neurorrecuperação e Neurorregeneração
O termo neuroprotecção é utilizado com alguma frequência para descrever no sentido lato ações de3:
- Neuroprotecção - preservação relativa da estrutura e função das CGR
- Neurorrecuperação - restauro completo ou parcial de CGR vivas mas disfuncionais a um estado de saúde estrutural e funcional, também descrito como neuro-melhoramento ou “neuroenhancement”19
- Neurorregeneração - geração parcial ou total de novos neurónios
Apesar de, até à data, múltiplos fármacos terem demonstrado propriedades “neuroprotetoras” em ambiente laboratorial, nenhuma delas foi capaz de demonstrar evidência incontestável de neuroprotecção em estudos randomizados e controlados de grande amostra20.
Os mecanismos de morte das CGR estudados para o desenvolvimento de estratégias neuroprotetoras têm sido vários, de entre os quais20,21,22:
- Privação de factores Neurotróficos (NT) – decorre do bloqueio do transporte axonal
- Excitotoxicidade do Glutamato – as CGR em sofrimento acumulam e libertam glutamato, que em excesso se torna tóxico ativando receptores N-metil-D-aspartato (NMDA) e a cascata apoptótica
- Stress Oxidativo – radicais livres em excesso danificam a estrutura proteica, o DNA e sinalizam a morte celular
- Via apoptótica – Estudam-se fármacos e terapia génica capazes de reduzir a expressão de caspases, preponderantes na cascata de morte celular
- Desestruturação proteica – comum a várias doenças neurodegenerativas entre as quais o glaucoma. As proteínas de stress ou choque de calor (heat-shock proteins) facilitam a reestruturação e protegem a estrutura tridimensional das proteínas da degradação
Têm sido estudadas também, propriedades “neuroprotetoras” de alguns fármacos já utilizados no tratamento do Glaucoma:
- Betaxolol : demonstrou efeito neuroprotetor em modelos animais, possivelmente por prevenção de dano por excitotoxicidade do glutamato22,23, mas também lhe é atribuído papel no aumento da síntese de BDNF24
- Brimonidina : O LoGTS25,26 (Low Pressure Glaucoma Treatment Study), estudo multicêntrico randomizado duplamente cego, demonstrou que a brimonidina preserva a função visual melhor que o timolol quando utilizados em monoterapia, nos pacientes que não desenvolvem alergia. O mecanismo poderá estar associado a um efeito benéfico da brimonidina ou prejudicial do timolol. Contribuirão para este resultado um possível efeito neuroprotetor, melhoria no controlo da PIO nas 24h (no estudo a PIO não foi medida durante a noite), melhoria da pressão de perfusão ocular, compliance ou outras variáveis não medidas ou desconhecidas26. Os potenciais mecanismos neuroprotetores da brimonidina incluem o aumento do BDNF, ativação de genes anti-apoptóticos e inibição da excitotoxicidade19
- Dorzolamida : Este inibidor da anidrase carbónica tópico, aumenta a velocidade de fluxo arterial27, reduz o pH intracelular e previne a apoptose28, no entanto os resultados dos estudos são conflituosos, não tendo demonstrado efeito protetor em modelos animais de glaucoma e hipertensão ocular29,30
Mais recentemente a Citicolina surgiu também no mercado do glaucoma com suporte de estudos com evidência experimental de efeito protetor e regenerador das CGR, assim como melhoria no desempenho de testes perimétricos e electrofisiológicos31,32,33,34. O mecanismo de atuação parece ser mediado pela ativação da biossíntese de fosfolípidos estruturais e membranas neuronais, melhorando o metabolismo cerebral e a disponibilidade de neurotransmissores35. Existe também evidência experimental de redução do número de CGR em apoptose e aumento da sua regeneração, possivelmente mediada pela supressão da expressão das caspases 3 e 931,34.
Com base nisto, o que é que já podemos oferecer aos nossos pacientes no dia a dia para além da redução da PIO?
- Exame oftalmológico rigoroso sem esquecer a gonioscopia em ambiente de baixa luminosidade e a realização de curva nictemeral quando indicada
- Documentação e estudo abrangente de todos os factores de risco vasculares e sua optimização
- Estreito controlo da tensão arterial dentro de valores reconhecidamente seguros, prevenindo as hipotensões noturnas com terapêutica hipotensora adequadamente doseada ou recurso a ingestão acrescida de sal ou mineralocorticóides em baixa dose8
- Não utilização de inibidores da anidrase carbónica orais particularmente em pacientes com GNT dado o relevante efeito da redução da PIC, além da PIO. No âmbito da melhoria da pressão translaminar, o recurso a estratégias de subida da pressão do LCR não é recomendável com base na evidência atual
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Complemento terapêutico em casos de glaucoma que progridem com baixa tensão:
- Ginkgo Biloba
- Citicolina
- Inibidores dos Canais de Cálcio? (Ponderar o risco de hipotensão)
- Promoção de um estilo de vida saudável de acordo com os conhecimentos atuais
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Não desvalorizar o incumprimento36 e a flutuação da PIO a longo prazo37,38 nos pacientes com GPAA que progridem com PIO aparentemente baixa
- Monitorizar e motivar para a adesão terapêutica, aproveitando para sensibilizar e informar a geração descendente
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Lembrar o papel adjuvante de técnicas independentes da adesão terapêutica, com evidência de controlo da flutuação diurna e a longo prazo da PIO:
- Trabeculoplastia39,40: a técnica seletiva não tem as limitações e efeitos secundários da tradicional
- Cirurgia41: existem hoje técnicas menos invasivas, seguras para reduzir o valor absoluto e as variações da PIO, mesmo em pacientes com glaucoma avançado em que hesitaríamos em propor técnicas convencionais
- Empenho na investigação de novas terapêuticas adjuvantes, aproveitando os avanços científicos mais recentes nos ramos da terapia génica, manipulação de células estaminais entre outros para que tão cedo quanto possível possamos falar de reabilitação funcional na prática clínica do Glaucoma.