Qual é efectivamente a terapêutica médica máxima tolerada pelos doentes?

João Filipe, MD

Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC)
Co-Autores: 
Isa Sobral, João Cardoso, Pedro Faria, José Moura Pereira

Introdução

O glaucoma é uma neuropatia óptica progressiva multifatorial, do qual se destaca a pressão intraocular (PIO)1. A PIO é precisamente o único fator de risco até à atualidade, cuja modificação é consensualmente aceite como sendo efetiva na redução da progressão do glaucoma1

Assim, se por um lado temos vários fármacos que nos auxiliam na redução da PIO, por outro lado temos de ter o bom senso de considerar o custo, efeitos laterais e compliance do doente à medicação crónica. Ou seja, qual a terapêutica médica máxima tolerada pelo doente?

O conceito de terapêutica médica máxima pode ser definido pela redução da PIO com recurso ao maior número de fármacos disponíveis e tolerados pelo doente, sendo de relevo obtenção de compliance por parte do doente aquando do incremento de medicação2

Evidência Científica

Sumariamente, o objetivo do tratamento do glaucoma (quer médico, quer cirúrgico) é travar a progressão do glaucoma, manter a função visual e a qualidade de vida do doente, a um custo aceitável3. Para esse efeito, devemos reduzir a PIO para uma determinada PIO alvo2. Contudo, não existe uma PIO alvo universal2,3,4. Assim, há alguns fatores sugeridos pela Sociedade Europeia de Glaucoma (SEG)3 que devem determinar menor PIO alvo (e consequente maior agressividade do tratamento), como: maior severidade do glaucoma, maior velocidade de progressão (determinada ao longo das observações oftalmológicas), menor valor de PIO sem tratamento, menor idade, maior nº de outros fatores de risco de glaucoma. A terapêutica médica mantém-se o método mais comum inicial para redução da PIO3,5. Vários são os fármacos que foram surgindo ao longo dos anos para enriquecer a terapêutica médica disponível – esquema 1.

Para atingir a PIO alvo, o tipo e número de fármacos hipotensores oculares que devemos utilizar também está especificado nas Guidelines da SEG3

Esquema 1. Cronologia de surgimento de anti-hipertensores oculares

Por conseguinte, recomendam-se as seguintes atitudes de prescrição:

1.       Utilizar em monoterapia um fármaco de 1ª linha (1 de 4 classes terapêuticas: bloqueador beta, análogo das prostaglandinas ou prostamida, inibidor da anidrase carbónica tópico ou agonista selectivo alfa 2)

2.       Identificar se a monoterapia foi eficaz (total ou parcialmente no atingimento da PIO alvo) e se houve tolerância:

a.       Totalmente eficaz (reduziu PIO para a PIO alvo): manter e vigiar com exames complementares

b.       Totalmente ineficaz (não reduziu PIO): substituir o fármaco anterior por outro de 1ª linha de outra classe terapêutica

i.      Voltar a verificar se houve redução da PIO:

1.       Atingiu PIO alvo: manter e vigiar

2.       Não atingiu PIO alvo: voltar a alterar monoterapia ou ponderar outras opções (nomeadamente terapêutica combinada, laser, cirurgia)

c.       Parcialmente eficaz (reduziu PIO mas não atingiu PIO alvo): associar um fármaco de 1ª linha de outra classe terapêutica em combinação fixa (um só frasco no total)

i.      Voltar a verificar se houve redução da PIO:

1.       Atingiu PIO alvo: manter e vigiar

2.       Reduziu PIO mas não atingiu PIO alvo: adicionar 3º fármaco de 1ª linha

a.       Reavaliar: caso não tenha atingido PIO alvo: ponderar outras opções terapêuticas

3.       Não reduziu PIO: substituir 2º fármaco ou ponderar outras opções terapêuticas

 

De salientar que caso se detecte progressão do dano glaucomatoso apesar de se ter atingido PIO alvo, teremos de baixar a PIO alvo ou ponderar outras formas de tratamento.

 

Alguns exemplos com fármacos comercialmente disponíveis em Portugal (que devem utilizar-se, de acordo com as Guidelines da SEG3, não como 1ª nem 2ª linha):

·         Combinação fixa de prostaglandina (PG) com bloqueador beta (BB)

o   Associado a brimonidina

ou

·         Combinação fixa de PG com BB

o   Associado a dorzolamida ou a brinzolamida

ou

·         Combinação fixa de brimonidina com BB

o   Associado a PG

ou

·         Combinação fixa de brimonidina com BB

o   Associado a dorzolamida ou a brinzolamida

ou

·         Combinação fixa de dorzolamida com BB

o   Associado a PG

ou

·         Combinação fixa de dorzolamida com BB

o   Associado a brimonidina

ou

·         Combinação fixa de brinzolamida com BB

o   Associado a PG

ou

·         Combinação fixa de brinzolamida com BB

o   Associado a brimonidina

Ou

·         Combinação fixa de brinzolamida com brimonidina (mais recente combinação fixa do mercado)

o   Associado a BB

ou

·         Combinação fixa de brinzolamida com brimonidina

o   Associado a prostanglandina

 

Outra ressalva refere-se à polimedicação2: quantos mais fármacos se utilizarem, maior o risco de intolerância e de má complianceI por parte do doente, o que reduz a eficácia terapêutica.

Em casos particulares (como doentes extremamente idosos, doentes cuja hipertensão ocular se associa a um estado patológico oftalmológico temporário, ou previamente à cirurgia), poderemos também recorrer a uma "4ª linha terapêutica":

·         Associando à terapêutica médica máxima um hipotensor ocular de outro grupo farmacológico

o   Por exemplo, caso o doente esteja a fazer uma combinação fixa de prostaglandina com timolol associado a brimonidina, podemos ainda acrescentar um inibidor da anidrase carbónica (brinzolamida ou dorzolamida).  A combinação fixa de brinzolamida com brimonidina associada a combinação fixa de prostaglandina com BB é actualmente a forma de terapêutica máxima disponível para atingir a PIO alvo em cada doente. Utilizamos frequentemente a mnemónica de:"dois frascos, quatro medicamentos", permitindo uma maior comodidade no número de instilações dos colírios.

o   Associando medicação oral (acetazolamida, de 250 a 1000mg por dia de acordo com vários fatores).

o   Ter em atenção que a acetazolamida é responsável por diversos efeitos laterais; deve evitar-se a sua medicação crónica exceto em casos altamente selecionados e monitorizando regularmente os parâmetros laboratoriais, como seja no  período pré –cirúrgico.

·         Em doentes internados e em intervalos curtos de tempo (dias), temos ainda a "5ª linha": manitol, por via endovenosa a 20%. O manitol é um agente hiperosmótico, útil quando necessitamos reduzir a PIO rápida e consideravelmente.

 

O uso de combinações fixas permite6:

·         diminuição do efeito washout

·         menor número de frasco e de instilações, gerando maior compliance

·         menor exposição a conservantes oculares

·         minimização de custos.

 

Abordagens com agentes neuroprotectores têm sido exploradas. Apesar dos achados pre-clínicos sugerirem um potencial papel neuroprotector, os estudos clinicos com estes agentes orais ou tópicos foram inconclusivos7.

Apesar do melhoramento das formulações e surgimento de novas combinações fixas, nenhuma nova classe farmacológica foi apresentada para o tratamento médico do glaucoma recentemente7. Várias moléculas encontram-se em estudo em ensaios clinicos: inibidor ρ cinase8, agonistas do receptor da adenosina9, latrunculina B10, análogos das prostaglandinas modificados11, pondendo-se relevar classes promissoras na terapêutica do glaucoma .

Finalmente, não podemos deixar de chamar a atenção para a Medicina como Arte, que apesar de possuir diversas estratégias terapêuticas, necessita de identificar para cada doente qual o tratamento mais adequado. Por exemplo, num doente com glaucoma em progressão devido a má compliance, se aumentarmos o número de frascos apenas contribuiremos para reduzir ainda mais a compliance, com subsequente agravamento da progressão.

Do mesmo modo, devemos ser bastante cautelosos relativamente a doentes que nos desabafam que não têm tempo para colocar as gotas, ou que todas as gotas picam, realizando um esforço para prescrever poucos fármacos e adaptando o conceito de terapêutica médica máxima a cada doente em particular...

Devemos ajustar as armas terapêuticas de que dispomos a cada caso clínico, e esse conceito engloba-se na terapêutica médica máxima. Alguns doentes têm uma compliance muito dependente do número de fármacos que utilizamos, deixando de colocar os colírios quando estes são numerosos. Devemos estar atentos a estes casos e prescrever (dentro da medida do possível) especificamente o número de colírios que cada doente tolerará.

Há doentes em que a terapêutica médica máxima é apenas um fármaco, pois não toleram mais. Outros há em que não há tolerância para nenhum fármaco, cabendo-nos o papel de explorar outras armas terapêuticas.

Consequentemente, a terapêutica médica máxima, apesar de se reger por diretrizes específicas e rigorosas, é um conceito dinâmico e flexível, adaptável a cada doente. Cabe-nos a nós, oftalmologistas, descobrir qual é a terapêutica médica máxima específica do doente que temos à nossa frente, e utilizá-la de forma a maximizarmos a compliance e prevenirmos a progressão do glaucoma de todos e cada um dos nossos doentes.

 

4ª Edição - Maio 2017