Devemos implantar lentes intra-oculares multifocais na cirurgia de catarata em doentes com glaucoma?

António Marinho, MD, PhD

Responsável do Departamento de Oftalmologia do Hospital da Arrábida, Porto

1-    Lentes Multifocais

As lentes multifocais são cada vez mais utilizadas na cirurgia de catarata pela independência de óculos que proporcionam aos doentes permitindo boa visão de longe, intermediária e de perto.

Estas lentes são desenhadas para obter 2 ou mais imagens retinianas simultâneas, nas quais apenas a imagem correspondente ao ponto de foco é nítido. Obtém-se assim uma visão “simultânea”.

As modernas lentes multifocais são essencialmente difractivas, possuindo pequenos degraus que dividem a luz para os diversos focos. Classicamente as lentes difractivas eram bifocais (ex. RESTOR, TECNIS) com um foco de longe e outro de perto. Actualmente dispomos de lentes trifocais (Panoptix, LISA TRI ou Finevision) que acrescentam um terceiro foco destinado à visão intermédia. Existem ainda as lentes multifocais de foco estendido (EDOF) como a SYMPHONY que apresentam um foco “contínuo” permitindo a visão a todas as distâncias

As lentes multifocais (tal como as monofocais) podem ser esféricas ou asféricas e podem ser consideradas pupilo dependentes ou independentes, dependendo do desenho. No entanto mesmo as consideradas pupilo-independentes (ex: At-LisaÒ, TecnisÒ,Panoptix)) vêem a sua performance diminuída com pupilas muito mióticas1.

Embora as lentes multifocais estejam associadas a bons níveis de visão de longe, intermediário e de perto não corrigidas, não deixam de ser isentas de problemas. Estes problemas resultam da divisão da energia luminosa entre os diversos focos.

Assim as lentes multifocais apresentam sensibilidade ao contraste diminuída relativamente às lentes monofocais especialmente em ambiente mesópico. Este facto resulta da coexistência de imagens (uma nítida e outra não), de modo que luz desviada para última (não nítida) prejudica a nitidez da primeira.

Vários estudos realizados com sensibilidade ao contraste demonstraram que as lentes asféricas difractivas apresentam melhores resultados que as antigas lentes esféricas ou as refractivas2,3,4. Por tal facto a discussão limitar-se-á a lentes trifocais asféricas e difractivas

 Estudos efectuados sobre o impacto das lentes multifocais no campo visual mostram diminuição da sensibilidade ao contraste, que não é reversível com a neuroadaptação5,6.

 

2-    Glaucoma

Como sabemos o glaucoma é uma doença em que há lesão das células ganglionares da retina levando a deterioração da camada de fibras nervosas da retina. Vários testes têm sido utilizados para detectar estas lesões:

a) testes psicofísicos, em que se procura testar os limiares de sensibilidade a diferentes estímulos. Dentro destes o exame do campo visual é o mais utilizado, mas podemos também utilizar testes de sensibilidade ao contraste, testes de visão de cores e exames electrofisiológicos. No que diz respeito à sensibilidade ao contraste, o consenso aponta para a presença de diminuição desta sensibilidade em doentes com glaucoma estabelecido em comparação com indivíduos normais ou apenas com hipertensão ocular (sem alterações detectáveis nos exames psicofísicos). No entanto a variabilidade de testes utilizados, bem como o elevado número de falsos positivos dificulta a análise de resultados no caso individual. Lembremos que todos os exames psicofísicos só se encontram alterados quando um número considerável de fibras nervosas é atingido7.

b) exames estruturais que procuram detectar alterações anatómicas precoces do disco óptico e camada de fibras nervosas. Dentro destes destacamos a fotografia estereoscópica do disco óptico, a tomografia de coerência óptica (OCT) e a tomografia confocal de varrimento.

É ainda a motivo de controvérsia saber qual destes tipos de exame demonstram mais precocemente a lesão das fibras nervosas no glaucoma.

 

3-    Lentes multifocais e Glaucoma

Após estas considerações sobre lentes multifocais e glaucoma convém sumarizar alguns pontos:

a)    As lentes multifocais provocam diminuição de sensibilidade ao contraste

b)    As lentes difractivas asféricas  (ex:Panoptix,Lisa tri, Finevision) são as menos penalizadoras

c)    Todas as lentes multifocais são algo pupilo-dependentes (embora algumas se apresentem como pupilo-independentes)

d)    No glaucoma há uma diminuição de sensibilidade ao contraste 

e)    No glaucoma há muitas vezes alterações pupilares (miose) induzidas ou não por medicação anti-glaucomatosa.

Assim sendo parece consensual que num doente com glaucoma estabelecido com alteração dos exames psicofísicos e /ou exames estruturais não deverá ser implantada uma lente multifocal a quando da cirurgia da catarata8,9. Neste caso e se for importante dar ao paciente uma independência de óculos para longe e perto, poder-se-ia colocar a hipótese de uma lente acomodativa, embora não exista actualmente no mercado lente efectiva com essas características.

Mais controversa será a atitude a tomar em doentes com hipertensão ocular ou história familiar de glaucoma, bem como doentes portadores do síndrome de pseudoesfoliação mesmo sem glaucoma. Estes doentes poderão constituir um desafio não só no caso de catarata mas também no quadro de cirurgia da presbiopia (Presbyopic Lens Exchange).

Não existem na literatura quaisquer recomendações (guidelines) sobre o assunto.  Na minha opinião pessoal estes doentes devem efectuar exames psicofísicos e estruturais. Como não é possível efectuar todos os exames sugiro o seguinte protocolo:

a)    Campo Visual

b)    Fotografia do disco óptico e camada de fibras nervosas

c)    Tomografia confocal de varrimento ou tomografia coerente óptica

Poderá parecer estranho não incluir neste protocolo o estudo da sensibilidade ao contraste. Trata-se no entanto de exame não estandardizado e com alto número de falsos positivos, sendo pouco útil no caso individual.

Se após efectuado o protocolo proposto não se detectarem anomalias não vejo inconveniente em implantar lentes multifocais no quadro da catarata ou lensectomia refractiva. Devem no entanto ser preferidas lentes difractivas asféricas e “pupilo-independentes”.

No caso de se diagnosticarem lesões funcionais e/ou estruturais deve-se proceder como nos casos de glaucoma.

No síndrome pseudoesfoliativo também não me parece indicado o uso de lentes multifocais.

 

4-     Mensagens finais

 

a)     Glaucoma comprovado:    Lentes Multifocais     NÃO

 

b)    Hipertensão ocular e História Familiar

                         Após protocolo sem anomalia:

Lentes Multifocais   Sem Contraindicação

Após protocolo com anomalia:

Lentes Multifocais   NÃO

4ª Edição - Maio 2017