Como é que a componente vascular pode causar glaucoma?

Luís Abegão Pinto, MD, PhD

Centro Hospitalar de Lisboa Norte. Centro de Estudos das Ciências da Visão, Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa

Do ponto de vista fisiopatológico, o estudo do glaucoma pode caracterizar-se primariamente por duas linhas de pensamento que procuram explicar a apoptose selectiva das células ganglionares da retina. Uma das teorias mais populares – a teoria mecânica – defende que o dano celular é induzido por uma compressão das estruturas neuronais, relacionada com o nível de pressão intraocular (PIO). No entanto, o facto de existirem um número significativo de doentes que desenvolvem ou apresentam progressão da doença apesar de valores tensionais reduzidos, sugere que outros factores poderão ser relevantes neste processo degenerativo. Uma das causas mais frequentemente apontadas nesse componente não-mecânico é a existência de uma disfunção vascular.

De facto, tem sido consistentemente demonstrado que os doentes com glaucoma – e principalmente os doentes com glaucoma normotensional – apresentam vários sinais locais e sistémicos de uma disfunção vascular1, 2. Têm sido descritas diminuições das velocidades arteriais ao nível retrobulbar e do disco óptico, vasospasmos periféricos e alterações cardiovasculares, subsequentes a uma disfunção do sistema nervoso autónomo e do controlo da pressão arterial e frequência cardíaca3-5.

A dificuldade da aplicabilidade e de translação do conceito da lesão vascular para a prática clínica advém da sua complexidade. O conceito clássico de uma isquémia induzida por uma hipoperfusão mantida dos tecidos não parece compatível com a patologia glaucomatosa. Doenças com hipoperfusão comprovada como a retinopatia diabética ou oclusões da veia central da retina não apresentam a escavação típica da doença glaucomatosa ou uma perda selectiva das células ganglionares. Por outro lado, caso houvesse essa ligação a uma hipoperfusão tecidular de carácter permanente, a associação do glaucoma a factores de risco cardiovasculares como a ateroesclerose ou dislipidémia teria uma magnitude que não se verificou nos vários estudos epidemiológicos já realizados6.

Assim, o que parece existir nos doentes com glaucoma é uma insuficiente regulação do aporte de sangue às células ganglionares. Quer por defeitos ao nível do sistema nervoso vegetativo, por disfunções do endotélio vascular ou ainda por outros processos não completamente esclarecidos, os doentes com glaucoma parecem ter uma disfunção a nível dos mecanismos que permitem manter uma pressão de perfusão tecidular constante7, 8. Daqui resulta uma maior probabilidade de haver períodos de vasoconstrição (induzindo uma isquémia), seguidos de uma normalização da perfusão tecidular, o que poderá conduzir às conhecidas lesões por isquémia/reperfusão, tão bem caracterizadas já em outros locais do organismo, como no miocárdio ou no encéfalo9, 10.

Nas lesões de isquémia/reperfusão, existe nos territórios subitamente privados de oxigénio uma transição para um estado de hipóxia, em que o metabolismo energético é menos eficiente por disrupção dos mecanismos de fosforilação oxidativa. Isto leva a uma produção de energia por processos anaeróbios, resultando em disfunção mitocondrial, diminuição do pH intracelular e produção de radicais livres de oxigénio quando é restabelecido o aporte sanguíneo. Dependendo do grau e extensão destas alterações, a lesão provocada pode ir de uma diminuição da função mitocondrial à apoptose celular11. A cabeça do nervo óptico tem uma concentração elevada de mitocôndrias que responde às suas necessidades energéticas, as quais são elevadas como consequência da inexistência de bainha de mielina a este nível. Qualquer situação de stress oxidativo que lese as mitocôndrias assume contornos particularmente graves nesta localização, nomeadamente resultando em insuficiente suprimento energético. Concomitantemente, a produção de endotelina e metaloproteinase 9, como consequência da própria lesão de isquémia-reperfusão, pode conduzir a uma disrupção da barreira hematoencefálica em torno do nervo óptico e a um envelhecimento acelerado desta estrutura. O aumento de endotelina provoca uma redução adicional do fluxo sanguíneo ocular, interfere com o transporte axonal e induz um estado de activação das células astrocitárias regionais. Esta activação pode também ocorrer como secundária a situações de stress mecânico (por exemplo, um aumento da pressão intraocular) e vai alterar dramaticamente o microambiente na cabeça do nervo óptico. Há uma “upregulation” da sintase de monóxido de azoto 2, o que aumenta a concentração local desta molécula; embora o monóxido de azoto, per se, não seja lesivo para as células, dá contudo origem à formação de peroxinitrite ao difundir-se até aos axónios das células ganglionares, já vulneráveis pela acumulação de radicais superóxido produzidos durante a lesão de isquémia-reperfusão. A peroxinitrite é um potente radical livre de oxigénio, responsável por disrupção da integridade da membrana celular e lesão do DNA mitocondrial12.

Estes processos induzidos pela instabilidade vascular podem assim ser sinérgicos com as lesões provocadas pela compressão mecânica, abrindo a possibilidade de ambas as teorias serem parcialmente correctas. A suportar esta ideia integradora das duas teorias, existem por um lado os relatos de redução da progressão da doença com a aplicação de bloqueadores de canais de cálcio ou estatinas (fármacos moduladores da vaso-regulação)13, 14, e por outro o facto da redução da PIO nos glaucomas normotensionais ser benéfica15implica que, mesmo nestes doentes, a PIO (ainda que baixa) está envolvida no processo fisiopatológico. No global, poder-se-à dizer que a instabilidade vascular induz um estado de fragilidade celular que torna as células ganglionares da retina mais susceptíveis a valores de PIO que seriam de outra forma inócuos.

Esta instabilidade vascular é particularmente relevante no grupo de doentes conhecidos como big dippers. Neste grupo de indivíduos, em que se regista uma diminuição da pressão arterial superior a 20% durante o período nocturno, os mecanismos de regulação vascular não conseguem compensar flutuações das pressões de perfusão desta ordem de magnitude. Vários centros documentaram já que estes doentes apresentam uma progressão mais rápida da doença e propõem várias medidas para tentar diminuir esta disfunção endotelial. Uma das vertentes foca o aumento do volume intravascular, de modo a evitar a vasoconstrição exagerada, promovendo não só o aumento do aporte hídrico bem como a toma de fludrocortisona nocturna ou o aumento do aporte de sal. Outros centros sugerem ainda a toma de bloqueadores de canais de cálcio por via oral em doses subterapêuticas. Deste modo, evitariam a instabilidade de fluxo provocada pelo vasospasmo das arteríolas de resistência, evitando as hipotensões nocturnas. Finalmente, é sugerido ainda que se coordene com os médicos prescritores de hipotensores arteriais a alteração dos esquemas terapêuticos destes fármacos, sugerindo tomas matinais e evitando a toma nocturna de hipotensores arteriais directos (como inibidores das fosfodiesterases). O racional por trás desta hipótese seria assim evitar que estes fármacos potenciassem uma eventual hipotensão arterial e consequentemente agravassem a queda marcada da pressão de perfusão ocular. No entanto, dados de estudos epidemiológicos parecem sugerir que a prevalência da doença poderá ser influenciada pelo tipo de medicação anti-hipertensiva que o doente toma. Quer o Thessaloniki Eye Study, quer o EPIC-Norfolk parecem demonstrar que os inibidores da enzima conversora do angiotensinogénio (IECAs) e os beta-bloqueantes sistémicos podem estar associados a formas menos avançadas da doença ou com valores de PIO mais reduzidos16-17. Por outro lado, o Rotterdam Eye Study parece indicar que a toma de bloqueadores de canais de cálcio poderá estar associada a uma maior prevalência da doença18. Este conjunto de dados acaba por demonstar o pouco que conhecemos ainda dos aspectos vasculares e como influenciam a fisiopatologia e o quão cauteloso deverá ser o oftalmologista na sua orientação sobre este assunto, quer em relação ao doente, quer em relação ao médico de família ou cardiologista.

Todos estes procedimentos são contudo fruto de trabalhos e da experiência clínica de apenas alguns centros e com um grupo limitado de doentes19-22. A complexa fisiopatologia da doença torna difícil o desenho de ensaios que validem estas estratégias para equilibrar as disfunções vegetativas nestes doentes. É de esperar que os avanços na área do estudo desta disfunção vascular conduzam à implementação de orientações clínicas comprovadas que reduzam os danos induzidos por esta disfunção vascular. 

 

4ª Edição - Maio 2017