De que forma a qualidade de vida dos doentes com glaucoma é afetada nos diversos estadios da doença?

João Filipe, MD

Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra (CHUC)
Co-Autores: 
Inês Laíns, Pedro Cardoso, Andreia Silva, Isa Sobral, Ana Miguel, João Cardoso, Pedro Faria, José Moura Pereira

Nas últimas décadas, a Medicina tem abandonado a sua abordagem mais tradicional e tem-se focado no doente e na sua perspetiva de saúde e doença. Nesse âmbito, a qualidade de vida (QV) reportada pelo próprio tem vindo a ganhar ênfase, particularmente em doenças crónicas, como é o caso do glaucoma. Os componentes de uma boa QV diferem entre indivíduos e sociedades, no entanto, a visão tem sido consistentemente demonstrada como um dos fatores mais determinantes1.

No caso do glaucoma, as repercussões na QV estão significativamente relacionadas com a gravidade da doença, tendendo a ter um atingimento progressivo com a progressão da mesma2. Os doentes com glaucoma podem perder QV por diversas razões: pelo diagnóstico em si, pela perda funcional [acuidade visual (AV) e campo visual], devido aos inconvenientes do tratamento, aos efeitos secundários da terapêutica e aos custos associados3. O seu impacto traduz-se não só na capacidade de desempenho das atividades da vida diária, como a condução, mas também em termos psicológicos e sociais4.

Nos estadios iniciais, o dano glaucomatoso é relativamente assintomático devido à redundância do sistema sensorial e à natureza binocular da visão, sendo um olho capaz de compensar as perdas precoces do outro4. No entanto, a QV dos doentes pode ser afetada desde logo5, embora muitas vezes tal seja pouco valorizado por nós, Oftalmologistas. Como salienta um estudo de revisão recente1, devemos lembrar-nos que os doentes com glaucoma inicial ou suspeita de glaucoma não estão interessados inicialmente na sua pressão intra-ocular, no seu campo visual ou na sua escavação, mas sim nas coisas que diretamente têm impacto na sua qualidade de vida, nomeadamente quão confortáveis se sentem. A verdade é que se estima que, no momento do diagnóstico, mais de 80% dos doentes com glaucoma inicie quadros de ansiedade, depressão e medo de cegueira6. Para além disso, com a instituição de terapêutica tópica surge o desconforto associado – quer pela necessidade de aplicação diária7, quer pelos sintomas que pode desencadear no segmento anterior8. É reconhecido que os colírios contendo conservantes, particularmente quando utilizados de modo crónico, reduzem a estabilidade do filme lacrimal e têm um efeito tóxico direto9,10. Assim, a sua utilização contribui para o agravamento dos sintomas do segmento anterior e também para uma menor adesão à terapêutica11. Existe uma associação entre os efeitos secundários dos colírios e uma menor QV reportada pelos doentes11. A necessidade de consultas regulares é também um fator mencionado. Apesar disso, surpreendentemente, um estudo prospetivo do Early Manifest Glaucoma Trial12 não verificou diferenças significativas na QV avaliada pelo questionário VFQ-25 (25-item National Eye Institute Visual Function Questionnaire) entre doentes que iniciavam e não iniciavam terapêutica anti-glaucomatosa em fases precoces da doença. Apenas uma pior AV e um pior desvio médio (MD) no campo visual apresentavam uma associação significativa. De facto, embora nesta fase a perda de AV seja habitualmente precoce e ténue, a verdade é que foi também significativamente relacionada com uma pior QV reportada pelos doentes, mesmo tratando-se de uma perda monocular4.

Com a progressão da doença, as repercussões na QV aumentam. De acordo com vários estudos publicados, a perda de AV e de campo visual são os principais determinantes13, representando ambos fatores com um impacto independente14. Em relação à perda de AV, importa referir que Freeman et al.15 verificou que o seu impacto é multiplicado quando esta é bilateral. Doentes com glaucoma bilateral apresentam scores consistentemente mais baixos de modo significativo. No que toca à progressiva redução do campo visual, um estudo de base populacional americano14 verificou que mesmo pequenas perdas estavam associadas a uma menor QV, existindo no entanto uma relação linear de agravamento desta com a maior gravidade de perda de campo visual. Perdas bilaterais tinham também um efeito aditivo. Neste estudo, as tarefas mais afetadas com a perda de campo visual foram a mobilidade e a capacidade de manter a autonomia. A saúde geral foi a escala menos afetada, dentro das avaliadas. Conclusões semelhantes foram reportadas no estudo de Roterdão16 e por Noe et al17, que verificou que mais de 25% dos doentes tinham restrições moderadas a severas na sua mobilidade devido a perda de campo visual. No entanto, importa referir que apesar da restrição no campo visual afetar a QV de modo independente da AV, a verdade é que esta última parece ter mais impacto nos resultados reportados pelos doentes14.

Em termos práticos, a perda de AV e de campo visual influenciam todas as atividades de vida diária, como caminhar, conduzir, ler, ser capaz de ver objetos a aproximar-se, desempenhar tarefas domésticas, entre outros desafios4. Mesmo quando a visão central ainda está preservada, os doentes podem sentir dificuldade na leitura, em adaptação às diferenças de luminosidade e nas atividades que são dependentes da visão periférica ou da percepção de contraste, como evitar obstáculos em locais escuros1. Para além disso, frequentemente estão associadas a outras graves consequências, como quedas e acidentes de viação18. Um estudo prospetivo19 verificou que, quando comparados com um grupo controlo com condições médicas gerais semelhantes, os doentes com glaucoma tinham uma probabilidade três vezes superior de ter sofrido uma queda nos últimos 12 meses é seis vezes maior de ter estado envolvidos numa colisão de um veículo motorizado nos últimos 5 anos. O estudo de base populacional Blue Mountains Eye Study20 verificou também que um campo visual reduzido estava significativamente associado a duas ou mais quedas nos últimos 2 meses e à ocorrência mais provável de fratura da anca. Para além disso, o glaucoma tem consequências na velocidade de marcha, no equilíbrio e na atividade física diária13. Esta redução da atividade física tem, como se torna claro, consequências também a nível da saúde global dos doentes, nomeadamente em termos de risco cardiovascular.

Importa destacar também as consequências a nível psicológico. Um estudo transversal verificou que a prevalência de depressão aumenta com o aumento da gravidade do glaucoma, sendo mais comum em idosos com formas avançadas e medicados com múltiplos colírios21. Em relação ao medo de cegar, curiosamente, um estudo prospetivo randomizado recente22 verificou que após o diagnóstico inicial 34% dos doentes reportavam medo de cegueira e que, apesar de se verificar um decréscimo nesta percentagem ao longo dos anos, aos 5 anos quase 50% mantinha pelo menos algum medo de cegar. Os indivíduos mais novos, com pior acuidade visual e com pior campo visual eram os que reportavam mais medo. Os autores destacam que se desconhece o motivo para este medo inicial tão elevado: será pelo modo como o diagnóstico é transmitido ou pela ausência de explicação de que, com o tratamento adequado, a probabilidade de cegar é baixa? A redução do medo ao longo do tempo é provavelmente devida ao seguimento regular e ao aumento do conhecimento sobre o baixo risco de cegueira com o tratamento, bem como a progressiva adaptação ao diagnóstico.

Nos estadios terminais de glaucoma, geralmente o campo visual está confinado a uma ilha central de fixação. Nestes, ao contrário do que acontece nas fases iniciais em que a AV e o campo visual do olho pior são os principais determinantes da QV, o olho com principal impacto parece ser aquele que mantém maior funcionalidade18. Como explicado, nesta fase é atingido o expoente máximo de perda de QV em todos os contextos acima discutidos2.

Em termos de tratamento, importa referir que, quanto às abordagens cirúrgicas, o Collaborative Initial Glaucoma Treatment Study (CIGTS)23 verificou que estas estavam associadas a sintomas mais frequentes e incomodativos, no entanto não a uma menor satisfação dos doentes nem a piores classificações em termos de QV genérica ou especificamente relacionada com a visão. No CIGTS, os doentes nas fases iniciais da doença reportaram dificuldades na adaptação aos extremos de luminosidade23. Curiosamente, no que toca à terapêutica médica, estima-se que a adesão à terapêutica seja maior nas etapas avançadas do que nos estadios iniciais, sendo adiantada como potencial explicação o facto de os doentes terem alguma percepção de acuidade visual diminuída e, desse modo, estarem mais motivados. No entanto, acredita-se que se trata de doentes com maior dificuldade na auto-administração dos colírios24.

Neste âmbito, recentemente o nosso grupo desenvolveu um estudo prospetivo observacional para avaliar de modo objetivo, nomeadamente com gravação de vídeo, as dificuldades dos doentes com glaucoma avançado na aplicação de colírios. Foram incluídos neste estudo 25 doentes. Como resposta ao inquérito, 68% destes afirmaram nunca ter dificuldades na colocação dos colírios, mas, aquando da análise das imagens, verificou-se que 20% foram incapazes de os colocar e apenas 40% conseguiu fazê-lo de modo correto. Do mesmo modo, 72% afirmavam que nunca tocavam com o frasco no olho, mas na realidade 40% fazia-o. Para além disso, avaliámos também a dificuldade na realização de tarefas do quotidiano (deambular em espaços com obstáculos, caminhar em pavimento irregular e subir e descer escadas), verificando-se uma tendência de correlação entre os defeitos de campo visual e as limitações nas tarefas, embora não estatisticamente significativa. Curiosamente houve doentes que utilizaram mecanismos de adaptação propriocetivos (exemplo: utilizar o pé para sentir a posição do degrau) para superar as suas limitações nas atividades testadas. Este estudo salienta como os doentes têm frequentemente uma má percepção das suas limitações relacionadas com a patologia, salientando a importância do médico confirmar que os colírios são aplicados corretamente e de alertar os doentes para os cuidados que devem ter nas suas atividades diárias.

Importa referir que extravasa o âmbito desta pergunta discutir os possíveis instrumentos para avaliar a QV em glaucoma. Existem múltiplos instrumentos disponíveis25,1, sendo alguns dos mais utilizados o NEI-VFQ  (The National Eye Institute Visual Function Questionnaire), o NEI-VFQ-25 (25-item National Eye Institute Visual Function Questionnaire), oGQL-15(The Glaucoma Quality of Life-15) e o SIG (Symptom Impact Glaucoma Score). No dia-a-dia clínico, mais relevante do que todos estes métodos é uma história clínica cuidada, essencial para avaliar a QV do doente e para conhecer as limitações que sente (ou não) nas suas atividades de vida diárias1. Para além dos objetivos ditos convencionais, deve ser também um grande objetivo do tratamento do glaucoma preservar a capacidade do doente viver e desempenhar as suas tarefas de modo independente, de modo a que a visão seja um instrumento de qualidade de vida e não um fator que a limite significativamente.

2ª Edição - Julho 2014