Como fazer a transição da trabeculectomia convencional para a trabeculectomia modificada de Moorfields Safer Surgery?

Fernando Trancoso Vaz, MD

Assistente Hospitalar Graduado de Oftalmologia, Coordenador da Consulta de Glaucoma do Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, E.P.E.
Co-Autores: 
Susana Henriques, Ana Sofia Lopes, Diana Silva, Mafalda Mota, Maria Lisboa
Hospital Professor Doutor Fernando Fonseca, E.P.E.

A trabeculectomia, descrita em 1968 por Cairns1,2, difere muito pouco da realizada nos dias de hoje (Trab Conv). O procedimento consiste na criação de uma fístula protegida da câmara anterior (CA) para o espaço subconjuntival/subtenoniano. Apesar da sua eficácia, está associada a uma taxa de complicações relativamente elevada, por drenagem excessiva de humor aquoso: hipotonia, atalamia, descolamento de coroideia, maculopatia hipotónica e hemorragia supracoroideia3. A técnica de trabeculectomia modificada Moorfields Safer Surgery System (Trab MSS), desenvolvida por Peng Khaw e colaboradores em 2005, diminui estes riscos, garantido uma maior segurança4–6.

Desde o final de 2008 que passámos a realizar esta técnica modificada no nosso serviço. As principais diferenças introduzidas são:

·         Realização de uma incisão conjuntival de base fórnix com uma extensa disseção subconjuntival. Passamos de uma incisão conjuntival de base límbica (incisão a 7 mm do limbo) na Trab Conv para uma incisão de base fórnix (incisão ao nível do limbo, a 1 mm deste, fazendo uma peritomia limbar com uma extensão entre 6-8 mm) (Fig.1) na Trab MSS. Por outro lado, enquanto na Trab Conv se faz apenas um desbridamento na região próxima do flap, na Trab MSS é feita uma disseção ampla e posterior, em direção ao fórnix (10-15 mm), de forma a criar uma área grande de filtração e a evitar complicações tardias da bolha, como leakage ou enquistamento (Fig.2).

Figura 1- Incisão conjuntival de base fórnix (peritomia)

Figura 2- Disseção ampla e posterior

·         Criação de um flap escleral que fica a 0.5-1 mm do limbo. Ao contrário da Trab Conv em que o flap escleral vai até ao limbo, na Trab MSS, o flap quadrangular de 4x4 mm, é delimitado com uma lâmina de 15º, e depois dissecado com uma lâmina de disco até uma distância de 0.5-1mm do limbo (Fig.3). A partir daqui, a disseção passa a ser feita apenas na região central (Fig.4), de forma a estimular a drenagem posterior do HA e a criação de uma bolha mais difusa e não quística, evitando também a sua extensão lateral justa límbica.

Figura 3 - Flap escleral (disseção com lâmina de disco)

Figura 3- Flap escleral (disseção com lâmina de disco)

Figura 4 - Flap escleral (disseção na região central próximo do limbo)

Figura 4- Flap escleral (disseção na região central próximo do limbo)

·         Colocação de antifibróticos numa área ampla. A escolha do anitfibrótico, caso seja necessário, deve ser estratificada de acordo com os fatores de risco para falência cirúrgica. Usamos para o efeito a classificação Moorfields/Florida “More Flow”: MMC 0.2 mg/ml risco intermédio e MMC 0.4 mg/ml risco elevado7. A aplicação é feita com esponjas de álcool polivinílico (menor risco de fragmentação, logo menor risco de ficarem fragmentos de material intraoperatório), idealmente durante 3 minutos (estudos experimentais farmacocinéticos de inibição de fibroblastos com MMC mostraram que após os 3 minutos de exposição observa-se a inibição de todos os fibroblastos observando-se um plateau inibição, sendo pouco maior o efeito antifibrótico observado para além deste período, e que entre os 1-3 minutos a inibição é exponencial e menos previsível havendo variação considerável na dose de fármaco que é captado e logo no seu efeito antifibrotico7), na área previamente dissecada bem como por debaixo do flap escleral (Fig.5). Os bordos da conjuntiva não devem tocar nas esponjas. Segue-se uma lavagem abundante com soro fisiológico. 

Figura 5 - Aplicação de MMC

Figura 5- Aplicação de MMC

·         Utilização de um estabilizador de CA durante a cirurgia (infusão contínua de soro). Depois de passar dois pontos nos vértices do flap (sem os apertar, apenas para ficarem no local – ‘pre-placed sutures’) faz-se uma paracentese paralela ao limbo (Fig.6), com longo trajeto intracorneano, (usamos uma lâmina Clear CutÒ – 1mm da Alcon), seguida da colocação de linha de infusão (usamos um estabilizador Lewick 20G – Katena K20-3271), ligado a uma garrafa de BSSÒ a 30 cm do globo ocular (1 gota/3-4 segundos, origina PIO 10-15 mmHg)8.

Figura 6– colocação de estabilizador da CA

·         Realização de uma esclerostomia estandardizada com “punch”. A remoção da esclera na Trab Conv é feita com lâmina 15º/tesouras Vannas, podendo variar muito o tamanho da esclerostomia realizada. Na Trab MSS, após ter entrado na CA com lâmina 15º, a esclerostomia é feita com punch 0.5 mm (Khaw Small Descemet Membrane Punch nº 7-101 - Duckworth and Kent), colocado verticalmente, para criar uma esclerostomia não valvulada (Fig.7).

Figura 7 - Esclerostomia com punch

Figura 7- Esclerostomia com punch

·         Iridectomia larga na base e curta em comprimento.

·         Utilização de suturas esclerais adicionais ditas ajustáveis/removíveis. Na Trab MSS, e ao contrário da Trab Conv, para além das duas suturas fixas, realizam-se mais duas suturas agora ajustáveis/removíveis, nos dois lados do flap segundo trajeto representado (Fig. 8). Inicia-se na esclera paralela ao flap (passo 1), segue um trajeto transescleral/transcorneano (não transfixivo), sai na córnea e volta a entrar na córnea um pouco ao lado (passo 2), segue de novo um trajeto transcorneano, e posteriormente por baixo do flap, até metade do flap junto ao bordo lateral. Volta a entrar na esclera, um pouco à frente, criando uma ansa (passo 3), atravessa a espessura do flap e entra na esclera adjacente saindo a alguns mm ao lado bordo lateral (passo 4). Dá-se quatro laçadas e aperta-se. O grau de aperto é determinado pela quantidade de HA que passa por baixo do flap (ideal – ligeiro ‘ooze’) usando uma microesponja (Fig.9 - VÍDEO). 

Figura 8 - Esquema de suturas ajustáveis

Figura 8- Esquema de suturas ajustáveis

 

Figura 9- Sutura ajustável

Estas suturas têm a vantagem de poderem ser ajustadas/removidas no pós-operatório, caso a PIO seja superior a 15 mmHg9,10. Este ajuste pode ser feito sob anestesia local, à lâmpada de fenda, com uma pinça de bordos rombos, pressionado o nó e fazendo pequenos movimentos laterais de 1mm, ou em direção à córnea. Alternativamente, pode cortar-se a sutura na sua passagem à córnea, e simplesmente puxar e removê-la. No caso de se utilizar MMC, este passo não deve ser feito antes do 1º mês pós-operatório. O ajustamento/remoção do ponto só é eficaz enquanto não houver grande cicatrização (primeiras 3 semanas) podendo-se estender até 8 semanas se usarmos MMC11–13.

·         Encerramento conjuntival. Existem várias formas de proceder ao encerramento da conjuntiva: 2 pontos nas extremidades da incisão conjuntival14(por vezes complementado por ponto “paranoia” a meia distância10), sutura contínua justa límbica, ou pontos ancorados a sulcos corneanos. Tendo os autores experimentado as diferentes modalidades de encerramento, não tendo notado diferenças em termos de estanquicidade, optamos pela primeira solução por ser a menos morosa.

Concluindo… Como fazer a transição da Trab Conv para a Trab MSS?

Os principais passos a dar para esta transição são a realização de uma incisão conjuntival de base fórnix com uma extensa disseção subconjuntival, criação de um flap escleral que fica a 0.5-1 mm do limbo, colocação de antifibróticos numa área ampla, utilização de um estabilizador de CA durante a cirurgia (infusão contínua de soro), realização de uma esclerostomia estandardizada com "punch", iridectomia larga na base e curta em comprimento, utilização de suturas esclerais adicionais ditas ajustáveis/removíveis e encerramento conjuntival com 2 pontos nas extremidades da incisão conjuntival.

Todas estas pequenas alterações introduzidas com a Trab MSS são de fácil aplicação, rápida aprendizagem e permitem uma maior reprodutibilidade na técnica, garantindo assim uma maior segurança e controlo da pressão intraocular, com menos complicações no pós-operatório, sem utilização de materiais ou dispositivos dispendiosos.

 

 

4ª Edição - Julho 2017