Qual o papel do oftalmologista no aumento da compliance terapêutica?
João Filipe, MD
Introdução
A compliance ou adesão terapêutica refere-se, a todos os aspetos que caracterizam a cooperação do paciente com as indicações médicas, efetuando uma correta administração da terapêutica prescrita1. É fundamental, pois adesão nula equivale a nulo tratamento e a progressão do dano glaucomatoso.
Podemos dividir o conceito de compliancei em2:
· Cumprimento - realização correta da terapêutica prescrita: via e modo de administração, horário e dose (nota: compliance pode ter um significado estrito a cumprimento; utilizaremos o significado lato de compliance).
· Persistência - manutenção adequada do cumprimento do tratamento prescrito, ou seja, é o período de tempo em que o doente cumpre a medicação até a descontinuar.
- Exemplo 1: Doente medicado com uma prostaglandina, que aplica a medicação durante apenas 6 meses, suspendendo-a sem indicação médica, falhou na persistência.
- Exemplo 2: Doente medicado com uma associação fixa de a aplicar de 12-12h, mas que só efetua à noite, e que todos os meses compra o colírio de associação fixa, tem uma persistência correta, apesar de ter um cumprimento de 50%.
Outro conceito é o de "cumprimento de bata branca" (white coat adherence)1, em que o cumprimento do doente aumenta notoriamente uma semana antes e volta a diminuir após a consulta.
Descrevemos métodos de estimativa da compliance do doente com glaucoma, e consequentemente métodos destinados a melhorar a compliance, como parte integrante do tratamento do glaucoma.
Evidência científica
Apesar da eficácia terapêutica dos fármacos para o glaucoma se encontrar francamente evidenciada, a falta de compliance apresenta-se como um problema de Saúde Pública3. Vários estudos identificaram associação entre não compliance e aumento da taxa de perda visual4, piores resultados terapêuticos e até aumento dos custos nos Cuidados de Saúde5. Sugere-se também que a persistência se situa habitualmente nos 33-39% ao longo de um ano no tratamento do glaucoma inicial2. A adesão e persistência à terapêutica em doentes com glaucoma é inferior à documentada em outras doenças cronicas (diabetes, dislipidemia, osteoporose)6.
A compliance é um conceito intuitivo, mas a falta de compliance num doente pode ser bastante difícil de detetar, por vários motivos2,7:
· O doente quer ser "aceite" e quer agradar ao médico, logo não irá facilmente admitir que não está a cumprir o que prescrevemos
· O doente não quer ser julgado
· A não adesão é um comportamento socialmente indesejável
· O doente quer que pensemos que é um “bom doente”
· É difícil medir verdadeiramente a compliance do doente
Uma revisão sistemática avaliou estudos de medição objetiva de compliance7 e concluiu que a persistência é baixa (aos 12 meses de tratamento é 67%, variando entre 62% e 78%), assim como o cumprimento (56%, com variação entre 37%-92%). Existem vários métodos de medição da compliance, que podemos e devemos utilizar (tabela 1).
Tabela 1. Exemplos de métodos de medição da compliance7. |
Segundo o estudo GAPS8 - Glaucoma Adherence and Persistence Study - os oftalmologistas consideram que entre 20% a 33% dos doentes não obtêm benefícios da medicação devido à falta de adesão, e que detetam entre 25% a 33% dos doentes com falta de compliance. Estima-se que a taxa de não adesão à terapêutica situa-se entre os 30-70%, contudo os doentes sobrestimam a sua taxa de cumprimento e persistência terapêutica1.
· Factores de risco de má compliance:
Existem vários fatores associados a baixa compliance2,9,10, que o oftalmologista deve identificar e corrigir (figura 1). Um estudo revisão recente9 identificou na bibliografia atual as onze principais causas de não compliance:
1. Ceticismo de que os fármacos serão eficazes
2. Ceticismo de que o glaucoma gera perda de visão
3. Baixo nível de informação sobre a doença
a. 14% dos doente2 desconhece que pode perder a visão por não colocar os colírios
4. Baixa eficácia pessoal
5. Esquecimento
a. a não utilização de rotinas e estratégias que ajudam à memorização da altura em que tem de se colocar as gotas
b. pluripatologia: a administração de vários fármacos diariamente gera esquecimento e erros de administração
6. Custo
a. 25% dos doentes refere como motivo para a falta de adesão, o custo da medicação hipotensora (mesmo que este seja pequeno)2, tem vindo a aumentar em Portugal
7. Dificuldades de aplicação dos colírios
a. presença de patologia física dificulta a aplicação do colírio - “discompliance”1
8. Dificuldades de seguir horário de aplicação
a. 15% dos doentes referem dificuldades em cumprir a terapêutica quando estão em viagem2
9. Efeitos secundários
10. Falta de confiança no médico
11. Stress
Fig. 1 Alguns factores responsáveis frequentemente pela má compliance do doente.
A baixa compliance pode incluir várias atitudes diferentes por parte dos doentes:
· Não administrar os medicamentos prescritos
· Uso excessivo de medicamentos ou administração de medicação não prescrita
· Tempo de intervalo entre as administrações ou posologia incorreta
· Uso da terapêutica para o objetivo errado
· Efeitos secundários
Acresce que o glaucoma é uma patologia crónica5, assintomática até estadios tardios, outro fator que prejudica a compliance (frequentemente utilizamos o aforismo: "o glaucoma não se sente, o que se sente é a terapêutica", referindo-nos ao incómodo ou efeitos adversos que a terapêutica pode causar ao doente, reduzindo consequentemente a adesão). A tentação de não cumprir é grande, pois o doente não sente a progressão inicial do glaucoma, mas sente frequentemente desconforto ao colocar os colírios prescritos.
· Medidas fomentadoras de compliance:
Cabe ao oftalmologista, perante o diagnóstico de glaucoma, prescrever a terapêutica apropriada, mas também e não menos importante, certificar-se que o seu doente realiza a mesma. O primeiro passo no combate à falta de compliance é a sua identificação. A adesão terapêutica pode ser potenciada, para além da modificação dos fatores de baixa adesão, com medidas multifacetadas baseadas em3,10,11:
1. Educação3:
a. consciencialização sobre a patologia, sua progressão e importância do tratamento
b. responsabilização do doente no plano de atuação terapêutica
c. Vídeos demonstrativos do modo de aplicação dos colírios e treino de aplicação
d. reforço positivo perante boa adesão
2. Personalização terapêutica3:
a. ajuste dos regimes terapêuticos às rotinas e capacidades físicas do doente
b. sistemas de alerta (aplicações móveis)
c. aliança1 - envolver um membro da família/cuidador para obtenção de correta terapêutica
3. Simplificação:
a. recorrer a associações fixas
b. escrever posologia e instruções de forma objetiva:
Exemplo:
NÃO escrever 2x/dia
Escrever de 12/12h
c. evitar/reduzir efeitos laterais
d. colírios em local visível
4. Verificação compliance em todas as consultas:
a. perguntas aberta10, centradas no doente, permitindo assim detetar com mais facilidade a não compliance
Pergunta adequada: “Que dificuldades teve a aplicar as gotas?”; “Quantas vezes esta semana se esqueceu de aplicar?” Doente compreende que pode expressar as suas faltas, permitindo posteriormente ao médico implementar medidas para melhoria da compliance.
Pergunta inadequada:” Fez a medicação corretamente, certo?” Doente sem espaço para admitir não compliance.
b. questionar se os fármacos prescritos na última consulta foram suficientes
Devemos insistir e persistir, sem nunca desistir, nesta tarefa árdua e contínua de estimulação para uma compliance persistente, com o objetivo supremo de manter a visão do doente e a sua qualidade de vida1 pelo máximo de tempo possível.